quinta-feira, 24 de agosto de 2017

O Quarto Vazio



O portão rangeu, com um suave queixume feminino, quando eleo fechou, depois de passar. O barulho fê-lo parar por um momento no caminho e olhar para a casa. A casa estava às escuras, avultando sombriamente na noite escura. Ele se perguntou se ela não estaria acordada, se o rangido do portão por acaso não a despertara. Mas realmente não se importava. As coisas já tinham ido tão longe que ele já não mais se importava com coisa alguma. As cenas estavam começando a deixá-lo nervoso demais. Já não mais agüentava as constantes repetições, as acusações (que não mais se dava ao trabalho de negar), as censuras intermináveis. Ele subiu pelo caminho e pelos degraus da varanda, tirando a chave do bolso. Entrou na casa, fechando a porta. E no mesmo instante sentiu a hostilidade, o ódio gerado pela presença dela, pelo ressentimento constante dela.

Guardou a chave novamente no bolso e já ia subir a escada quando ouviu a voz dela saindo da escuridão, calma, controlada, pronunciando o nome dele como se tivesse acabado de decidir o que fazer, depois de
horas de silenciosa meditação.

— Carl.

Ele estacou brusco, ao pé da escada, a mão sobre o corrimão. Sabia exatamente onde ela estava, parada ao lado do velho relógio de pé, no canto perto da porta. Quando ela o esperava, era ali que sempre ficava.

— A esta altura, eu já deveria estar acostumado, mas você continua a me deixar sobressaltado — disse ele.

— Por que diabo não me deixa saber onde está? Por que não fica com uma luz acesa?

— E por que eu deveria?

A voz dela soava muito tensa, na escuridão. Carl podia ver, sem realmente olhar, o rosto fino, os lábios cerrados, os olhos pequenos e intensos começando a ficar enevoados.

— Você faz alguma coisa às claras, Carl? Você me avisa de alguma coisa?

— Você sabe perfeitamente onde eu estava.

A voz dele era calma, paciente. Podia vê-la agora, perto do relógio, perto do pêndulo que oscilava de um lado para outro.

— Não, Carl, não sei. Quero que você me diga. Quero que continue a me dizer toda vez que for até lá, até que sua consciência comece a latejar dentro da cabeça.

— Por favor, Laura, não comece outra vez.

— Mais uma vez, Carl. E mais e mais, sempre mais, mil vezes mais, até que você pare.

— Ou até que eu a largue.

— Você nunca faria isso.

Agora ela iria dizer: “Se você me abandonasse, o que iria fazer? Para onde iria? Você não tem dinheiro nem emprego, Carl. Eu o mantenho aqui e o sustento com o dinheiro que o levou a casar-se comigo, porque outrora acreditei em você e o amei...”

— Cale-se! — gritou Carl, antes mesmo que ela começasse a dizêlo.

— Está bem, Carl.

— Mas que diabo, Laura! Será que você não pode acostumar-se à realidade das coisas?

— Estou acostumada a você, Carl, mas não ao que está fazendo.

Nenhuma mulher poderá jamais acostumar-se a uma coisa dessas.

— Sabe por acaso quantos homens casados se encontram com outras mulheres?

— Está tentando justificar-se, Carl?

— Não tenho que justificar-me de coisa nenhuma, nem para você nem para ninguém mais!

Ele estava começando a sentir uma calma perigosa, o prenuncio de uma grande tempestade. Estava tornando-se cada vez mais frio. Podia sentir a sensação invadi-lo, penetrá-lo inexoravelmente, saindo da escuridão tensa e hostil, como se fosse de algum reservatório de trevas. Ficou fascinado, como se estivesse sendo dominado por uma força estranha e nova.

Quem ela pensava que era? Será que ela pensava que seu dinheiro nojento dava direitos de propriedade sobre a alma e o corpo dele? Carl encaminhou-se para ela, exultante, inebriado, com aquela calma estranha e perigosa que o dominava, a raiva cega e implacável que estava fazendo seu sangue espumar. Laura ficou alarmada, com a maneira pela qual ele se estava encaminhando para ela na escuridão, tão silencioso, tão concentrado...

— Carl! — disse ela, a voz estranhamente baixa, mas estridente e aterrorizada. — Não...

Atracaram-se no escuro, junto ao relógio. Bateram com violência de encontro ao velho relógio. O pêndulo continuou a oscilar, pacientemente, indiferente a tudo. Eles se afastaram do relógio, ainda atracados, numa
luta tensa e desesperada. Pela garganta de Laura saía um ruído cavo de gargarejo. Carl fê-la girar e ela caiu de joelhos, as mãos dele cravadas em sua garganta. Laura fitou-o, a boca aberta, sem conseguir falar. Os olhos de ambos ficaram separados apenas por alguns centímetros. Os olhos de Carl eram frios, concentrados. Nos olhos de Laura podia-se ver o brilho da morte.

Finalmente, ele a largou. Laura caiu de lado, inerte. E ficou estendida diante do relógio, sob o movimento infinito e indiferente do pêndulo. Das profundezas do velho relógio veio um estalido suave, como um súbito
suspiro de remorso. Carl olhou ao redor. Era estranho, pensou ele, que nada se tivesse alterado, que tudo continuasse tão quieto, como se todas as coisas estivessem ingenuamente inconscientes ou desinteressadas pelo que acontecera. Um assassinato acabara de ser cometido ali e nada mudara. Nem mesmo ele. Sentia-se muito calmo com relação ao que fizera. Nem mesmo estava com a respiração ofegante. As próprias mãos, que haviam cometido o crime de forma tão eficiente, não apresentavam a menor diferença. Ele estava de pé ali como se nada tivesse acontecido. E talvez nada tivesse acontecido. Do ponto de vista da punição, os assassinatos só ocorriam se os outros descobriam. Mas ele não ia sair pelas ruas a dizer a todo mundo que assassinara a esposa. Ela também não contaria nada a ninguém. E a única coisa que o velho relógio de pé diria seriam, as horas.

Ele foi para o living, fechou as cortinas e acendeu um abajur. Tirou o casaco, sentou-se numa poltrona e acendeu um cigarro. Podia ver parte do corpo inerte de Laura. Ficou a contemplá-lo, pensativo, segurando o cigarro diante da boca, a fumaça subindo diagonalmente através do seu rosto. 

O que faria com ela agora?

Recordou-se de ter lido recentemente sobre um esqueleto que fora desenterrado do porão de uma velha casa, que estava sendo demolida. Haviam calculado que o esqueleto, de uma mulher, estivera enterrado
no porão há pelo menos 50 anos. Carl disse a si mesmo que algum outro homem cometera um crime semelhante ao seu e conseguira escapar impune, vivendo tranqüilamente e sendo enterrado como um homem
virtuoso.

E, assim, Carl Bogan desceu para o porão. Com uma picareta, conseguiu rachar o chão do porão, arrancando grandes pedaços de concreto. Não demorou muito para estar escavando a terra escura e mole. Tremia de excitamento. Cuidadosamente, abriu um buraco grande o suficiente. Já era madrugada. Subiu e pegou o corpo da esposa. Levou-o para o porão e colocou-o na tumba. Havia um velho saco de cimento no porão. Era do tipo que já vem misturado com areia, para uso dos operários de fim-de-semana. Misturou
o cimento com água e pouco depois já havia coberto o buraco aberto no chão. A esta altura, os primeiros raios de sol começavam a entrar pelas janelinhas do porão, anunciando um dia maravilhoso. Assim que acabou, Carl sentou-se numa cadeira de vime no porão e fumou um cigarro, olhando para a cova sinistra. Depois, cobriu o lugar com o tapete do corredor. E assim Laura tinha desaparecido. Mas as pessoas iriam notar. Carl pôs-se então a imaginar uma história para explicar o desaparecimento de Laura. Não seria muito difícil, porque Laura nunca tivera uma atividade destacada na vizinhança. Não era uma dessas ruas em que todo mundo sabe quem foram os ancestrais e qual a renda do vizinho. As aventuras extraconjugais de Carl haviam envergonhado Laura (ela achava que todo mundo sabia, embora Carl fosse bastante discreto) e ela se isolara, a tal ponto que, agora, sua ausência súbita poderia passar despercebida. Escreveu para os parentes distantes de Laura, na Califórnia, informando que ela estava doente. Tomou cuidado para não alarmá-los, pois não queria que viessem correndo para uma visita súbita. (Afinal, Laura era uma parente consideravelmente rica.) Mas fez tudo de uma vez. Naquela mesma tarde, escreveu quatro cartas diferentes, a serem despachadas a intervalos de uma semana, descrevendo a doença de Laura, as melhoras, as recaídas e a morte subseqüente.

Os dias foram passando. No terceiro dia, Carl percebeu que ainda não saíra de casa, desde a noite do assassinato. Censurou-se acerbamente. Nada havia a temer, ninguém viria correndo para desenterrá-la, se por acaso saísse de casa. Mas era assim que ele se sentia.

O telefone tocou. Carl atendeu. Era para Laura. O açougueiro disse que a Sra. Bogan não fora buscar a encomenda. Havia alguma coisa errada?

— Não — disse Carl rapidamente. — Não há nada errado. Apenas a Sra. Bogan não se está sentindo bem.

Palavras de simpatia do açougueiro. Era a última coisa que Carl queria ouvir naquele momento. Interrompeu o açougueiro bruscamente e desligou. Aquilo o fez pensar de novo. Ele dissera que nada havia de errado,
para logo depois acrescentar que Laura estava doente. Coisas assim poderiam deixar as pessoas desconfiadas. Talvez os vizinhos não fossem tão cegos ou indiferentes. Alguém acabaria por notar que a Sra. Bogan não mais aparecia e começaria a fazer perguntas. Laura poderia ter amigas. Pensando nisso, Carl compreendeu que conhecia muito pouco sobre os hábitos da esposa. Ele passava os dias inteiros fora de casa, às vezes não voltava por vários dias seguidos. Como poderia saber o que Laura fazia, com quem conversava? Ele dormiu um pouco naquela tarde. E teve um pesadelo. Por mais que seu subconsciente tentasse desesperadamente romper os grilhões do sono e despertá-lo, o fato é que não o conseguiu. Ele continuou dormindo, suando e e se remexendo, ao longo de todo o angustiante pesadelo. Laura estava tentando desenterrar-se, lá no porão. Ele podia ouvi-la escavando. Havia gritos abafados de terror e raiva. O barulho feito por Laura, escavando, foi tornando-se cada vez mais alto, ensurdecedor. O chão de concreto começou a rachar. Houve uma explosão terrível no porão, sacudindo as fundações da casa, as paredes, chocalhando as janelas. Carl levantou-se de um pulo, os olhos arregalados, horrorizado com
o que acabara de ver. Olhou ao redor. Estava tudo quieto. Quieto demais.

Sentiu que a calma aparente era um logro. De meias, desceu correndo para o porão, o coração batendo descompassado, de tanto medo. No pânico, quase tropeçou e rolou pela escada do porão. E logo estava lá embaixo, de pé sobre o tapete, tremendo de apreensão. Abaixou-se e, com as duas mãos, levantou o tapete. O lugar permanecia inalterado. Recolocou o tapete no lugar e ergueu- se. Cobriu os olhos com a mão. O que estava acontecendo com ele? Compreendeu quase que no mesmo instante. Estava mesmo pedindo por aquele pesadelo, ao ficar em casa daquele jeito. Tratou de sair. Imediatamente, sentiu-se revigorado, aliviado, como se alguma ameaça sombria tivesse sido afastada. Parou na calçada, diante
da casa, sentindo os raios fortes do sol. Foi então que uma voz o chamou:

— Ei, Sr. Bogan! 

No mesmo instante, ele sentiu o coração se apertar, a serpente da consciência a envolvê-lo. Esforçou-se ao máximo para manter a calma, censurando-se por ter de fazer o esforço. A mulher da casa ao lado estava também parada na calçada. Era uma mulher um tanto gorda, de blue jeans e uma camisa branca velha do
marido. Tinha na mão uma tesoura de poda.

— Como tem passado, Sr. Bogan?

Ele ia muito bem.

— E a Sra. Bogan? Não a vejo há quase uma semana.

Já começava! Laura desaparecera há apenas três dias e já estavam pensando em uma semana. Dali a pouco, começariam a murmurar. Em seguida, iriam acusá-lo de assassinato.

— Ela não está passando bem.

Palavras de simpatia. Como se aquela mulher realmente se importasse! Malditas bisbilhoteiras! Ela agora ia querer saber...

— Há alguma coisa que eu possa fazer?

— Não, obrigado.

— Ela está muito doente?

— Não sei.

— Já chamou um médico?

Nos olhos da mulher já havia uma acusação, ainda não de assassinato (mas era só esperar um pouco!), mas de que ele certamente espancara a esposa, que Laura devia estar de cama, cheia de equimoses pelo corpo.

— Já. E o médico disse que ela precisa de repouso absoluto.

— Posso ir perguntar a ela se está precisando de alguma coisa? Talvez eu possa preparar-lhe uma sopa.

— Não, não, obrigado.

Carl percebeu que se apressara em responder, tivera até pressa demais. Mas que diabo! O que estava acontecendo com ele?

— Eu mesmo estou cuidando dela — acrescentou.

— Mas quando estiver no trabalho...

Eles ainda acreditavam que Carl trabalhava. Pelo menos isso ele conseguira esconder dos vizinhos. Mas aquela mulher idiota era insistente. E continuaria insistindo, até que começasse a ficar desconfiada. E tudo
faria e se intrometeria sob o pretexto de sua bondade para com a humanidade!

— Vou contratar uma enfermeira.

Novamente, Carl percebeu que falara depressa demais. Mas tinha de dizê-lo. A mulher sorriu. Não estava desconfiada agora, nem ao menos se mostrava insistente. Era admirável como uma pequena mentira, no momento certo, poderia resolver qualquer problema. Carl sorriu. Os dois sorriram-se, à luz intensa do sol.
Carl voltou para dentro da casa, trancando a porta. Sentou-se numa poltrona. O que fora dizer? Mas tinha sido a única maneira de repelir a mulher. Uma mulher daquele tipo era bem capaz de ficar possuída por
suas boas intenções e invadir a casa armada de uma sopa. Mas, talvez, no final das contas, talvez não fosse uma idéia tão ruim assim. Carl começou a pensar seriamente no assunto. Não poderia contratar uma enfermeira de verdade, é claro, mas poderia trazer alguém para tomar conta da casa, uma pessoa para cozinhar e limpar, enquanto Laura estivesse supostamente doente. A pessoa não precisaria necessariamente
avistar-se com a Sra. Bogan. Afinal, a Sra. Bogan estava gravemente doente. Precisaria de repouso absoluto, não ser incomodada por ninguém. Haveria ordens rigorosas nesse sentido. Com isso, todas as suspeitas seriam dissipadas. Carl teria tempo para respirar, enquanto pensava no que fazer em seguida. Além do mais, ele já se comprometera a arrumar alguém. Publicou um anúncio no jornal. Precisa-se de alguém para cuidar da casa, enquanto a dona está doente. Alguém para cozinhar e limpar, sem se meter no que não fosse da sua conta.

Alguns dias depois, Betta Cool tocou a campainha. Carl foi abrir a porta. Ela estava com o jornal na mão, aberto na seção de classificados. Era uma mulher alta, o rosto um tanto pálido, não muito bonita, mas também sem nada de feia. Pálida e quase bonita, lábios finos, olhos pensativos. Ainda não havia chegado aos 40, pensou Carl. E o instinto aguçado dele em tais assuntos disse-lhe também que era o tipo de mulher em quem poderia um dia confiar. De qualquer maneira, uma mulher não falaria o que não fosse necessário. Carl podia sentir que ela já carregava inúmeros outros segredos. Houve uma entrevista rápida e cortês. A Sra. Cool — ela informou que era divorciada — já fizera trabalhos semelhantes antes. Morava no outro lado da cidade, sozinha. Respondeu às perguntas de Carl quase que somente com monossílabos. Parecia inglesa. Ou, antes, irlandesa.

Sabia cozinhar?

— Claro.

E cuidar da casa?

— Claro.

E Betta Cool acrescentou:

— Também conheço um pouco de enfermagem, se meus serviços forem necessários.

— Não precisa preocupar-se com isso. O emprego é exclusivamente para os serviços domésticos. A Sra. Bogan precisa de repouso absoluto, sem ser incomodada por ninguém.

Carl falou quase num sussurro, ressaltando em seguida:

— O médico vem vê-la uma vez por semana.

A Sra. Cool fitou-o, um olhar firme e prolongado. Ela queria saber mais alguma coisa, mas não iria fazer a pergunta diretamente. Assim, dando à sua voz o tom de emoção adequado, Carl acrescentou:

— Ela ia ter um filho.

A Sra. Cool no mesmo instante manifestou a sua simpatia.

— Ela está muito doente — murmurou Carl, baixando os olhos, numa atitude de desespero, procurando imprimir às suas palavras o tom mais pessimista possível, embora não totalmente destituído de esperanças.
Assim, o trato foi feito. A Sra. Cool viria todas as manhãs, arrumaria a casa (somente o andar térreo), cozinharia as refeições da Sra. Bogan. O Sr. Bogan levava as refeições para o segundo andar, sentava-se no quarto de Laura e comia-as. Depois, levava os pratos vazios para baixo, com os comentários da Sra. Bogan:

— Ela disse que é uma excelente cozinheira, Sra. Cool.

— Obrigada, senhor.

Carl observava-a. Ela não era uma mulher feia. Absolutamente. E, de vez em quando, ela também lhe lançava um olhar furtivo. Carl sentiu que a mulher estava com pena dele. Ele sabia como tal situação iria
acabar. As mulheres e sua compaixão... A Sra. Cool preparava refeições especiais para ele, que era obrigado a comê-las, apesar de já estar empanzinado. As coisas viraram rotina, tudo transcorrendo sem maiores novidades por uma semana, depois duas. Todas as manhãs e todas as tardes, Carl levava a bandeja com os pratos cobertos de guardanapos para o quarto vazio, trancava a porta, sentava-se e comia tudo, murmurando de vez em quando algumas palavras à guisa de conversação, esperando que a Sra. Cool, lá embaixo, pudesse ouvi-las. Todas as tardes, às 4 horas, a Sra. Cool ia embora. Uma tarde, Carl
acompanhou-a até o ponto de ônibus.

— Como ela está indo? — perguntou a Sra. Cool. 

Carl sacudiu a cabeça.

— Continua na mesma. O que não é nada bom. O médico esteve lá em casa ontem, pouco depois de sua partida, e disse que ela não está apresentando nenhuma melhora. No estado dela, isso é péssimo. Ela se
limita a ficar deitada na cama, olhando para as paredes, quase sem falar.

— Está certamente pensando na criança.

— É bem provável.

Chegaram ao ponto de ônibus. Ela o fitou nos olhos.

— Falando com toda franqueza, Sr. Bogan, quais são as possibilidades dela?

— Aqui entre nós, Sra. Cool, não são nada boas. Senti isso, pela expressão do médico.

— Não sabe como estou com pena do senhor. Está passando por uma terrível provação. Conheço esse tipo de solidão. É o mesmo que tenho sofrido por toda a minha vida.

— É mesmo?

— É, sim.

Carl não conseguiu reprimir a sua frase seguinte:

— Talvez possamos procurar nos animar mutuamente, qualquer dia desses.

Ele não esperava nenhuma resposta, mas Betta Coo surpreendeu-o.

— Talvez, uma noite dessas, uma vizinha possa ficar tomando conta dela, para que possamos ir a um cinema juntos. Seria muito bom para o senhor.

— Claro que seria — disse rápido Carl, subitamente animado. — Eu não ficaria surpreso se isso pudesse ser acertado.

Assim, uma “vizinha” começou a tomar conta de Laura, todas as noites. E Carl Bogan estava novamente envolvido com uma mulher. A solidão da Sra. Cool, uma vez assaltada, desmoronou ruidosamente. Eles passavam noites alegres e agradáveis. Carl não se parecia com um homem que estava com a esposa agonizante. Dançavam e iam assistir a todos os espetáculos. Bebiam alegremente. E Carl ia levá-la a casa.

— Está fazendo com que eu me sinta novamente como uma colegial, Carl.

— Acho que nós dois estávamos precisando disso.

— Mas não acha que é errado o que estamos fazendo?

— Claro que não. Tire essa idéia da cabeça, Betta. Somos apenas dois seres humanos que estão procurando aproveitar um mínimo, diante dos problemas terríveis que o destino nos reservou.

— Quanto tempo acha que ela ainda vai viver?

— Não sei. Ela nunca muda. Seu estado continua estacionário.

— A impressão é de que nunca mais vai acabar...

E era exatamente assim que Carl queria que continuasse. Não sabia o que fazer em seguida. Se por acaso dissesse que Laura morrera, isso implicaria novos problemas. O enterro não poderia ser secreto. Diversas
pessoas teriam de ser informadas. Haveria necessidade de um atestado de óbito. E também o agente funerário. Seriam complicações demais, mesmo que ele conseguisse fazer um enterro particular. Ele pensou em contar toda a história a Betta. Ela o amava, o que a transformava numa mulher escrava. Mas Carl teve receio. Conseguira levar a farsa a bom termo, até aquele momento, sem a ajuda de ninguém. Não lhe agradava a idéia de colocar-se nas mãos de outra pessoa, correndo todos os riscos inerentes. Não obstante, era preciso fazer alguma coisa... e com rapidez.

Provavelmente a única coisa que ele poderia fazer seria desaparecer. O que não era uma idéia tão ruim como podia parecer à primeira vista. Havia uma boa possibilidade de que Laura, assim como acontecera
com a outra mulher, não fosse descoberta pelos próximos 50 anos. Carl poderia dizer que os dois iam viajar, como meio de apressar a convalescença de Laura. Assim, estaria tudo acabado. Quem iria pensar em escavar no porão?

Carl ia pensando nisso tudo quando levou a bandeja de Laura para o quarto vazio. Sentou-se ali e comeu, olhando pela janela. Poderia vender a casa. Teria pelo menos esse dinheiro. É claro que era uma pena
perder todo o resto do dinheiro de Laura, mas essa seria a penalidade que ele teria de pagar.

Foi então que ele teve uma inspiração súbita. Por que perder todo aquele dinheiro? Por que não colocar Betta no lugar de Laura? Com um enterro íntimo, poderia perfeitamente escapar. Somente o pessoal da
agência funerária é que veria o corpo... e eles não conheciam Laura. Era um verdadeiro golpe de gênio. Como as peças se ajustavam em seu lugar, maravilhosa e ironicamente! Mas ele teria de pensar em todos os detalhes cuidadosamente.

Desceu para a cozinha com os pratos vazios.

— Ela comeu tudo? — perguntou Betta.

— Comeu — respondeu Carl, fitando-a de maneira estranha.

— Carl... você me ama?

— Ora, Betta, creio que você sabe disso muito bem. Para dizer a verdade, eu estava pensando em você durante todo o tempo em que fiquei lá em cima.

— Quando ela morrer, você continuará a me amar?

— Mais do que nunca.

— Isso não vai demorar a acontecer, Carl.

— O que está querendo dizer com isso?

Betta olhou para os pratos vazios. Depois, tornou a olhar para Carl.

— Pus veneno na comida dela, a fim de apressar a sua morte. 

Carl empalideceu. Depois, começou a sentir o corpo entorpecido, o veneno a dominá-lo inexoravelmente.
Ainda conseguiu chamá-la de idiota antes de morrer, contorcendo-se furiosamente no chão, diante dos olhos atônitos dela.

Autor: Donald Honig
Fonte: Livro "13 Histórias de Arrepiar"

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