quinta-feira, 24 de agosto de 2017

A Casa Dos Fundos


Eu não me achava gostosinha aos 16 anos. Mas cheguei a ficar convencida quando ele me lançou aquele olhar canibal. Eu passara o sábado todo de pijama, shortinho curto e tal – na varanda da minha casa, qual é? Não deveria ser um problema.

Fazia calor e fui pegar um pouco de sol enquanto tomava o café da tarde. Quase larguei o copo de suco e o pão no chão quando dei de cara com o sujeito parado ali na sacada, apoiado na grade frouxa que podia ceder a qualquer momento, fumando e me encarando como se estivéssemos prestes a ir para a cama juntos.

– Quem é você? – perguntei, embora o impulso inicial fosse berrar por meu pai.

O mané riu debochado. Vá lá, não era mané. Era um exagero de homem. Não pude evitar encará-lo de volta. Cabelos pretos jogados na testa, pele tostada, olhos cor de cerveja que não pareciam ser realmente daquele rosto. Jeans, camiseta justa, básico, no ponto. Jogou sua bituca no chão e apagou-a com o pé. E respondeu:

– Talvez a resposta às suas preces?


Desviei o olhar quando vi que ele estava mentalmente comendo as minhas pernas. Sei que corei. Eu tinha vergonha daquelas coxas que para mim, moleca, eram grossas demais, mas que para mim, mulher, no futuro seriam motivo de orgulho.

– Se liga – retruquei, querendo parecer forte. – O que é que você tá fazendo na minha varanda? Pode ir rapando daqui, senão…

– Ah! Você tá aí. – A voz que vinha das minhas costas era de Clélia. Ela foi avançando pela sacada, que pelo jeito já não era mais minha, pegando na mão do cara e puxando-o em direção ao seu portão, que estava ali só para efeito psicológico de limite de territórios, já que era pequeno e de madeira, sem nenhuma segurança. Talvez por isso o seu amiguinho tivesse achado que podia ir e vir quando quisesse.

Ela me deu um oi enviesado e rebocou o bonitão pelo corredor que levava à sua casa.

Clélia vivia na casa dos fundos. Eu morava com meus pais e meu irmão na da frente. O locador gostava de nós e no contrato constava que a área da varanda e do jardim nos pertencia, sendo vedado ao morador da casa nº 2 transitar por ali, ou qualquer outro palavreado empolado que os advogados adoram. Clélia, aliás, era advogada, provavelmente em começo de carreira – ou muito ruim, pois a casinha que alugara não era grande coisa. Eu já entrara lá no tempo em que estava vazia com um ou outro namoradinho, só para me divertir um pouco, mas ninguém com quem eu tivesse ânimo de perder minha virgindade. Cozinha, banheiro muito apertado, sala e, no andar de cima, dois quartinhos acarpetados, próprios para criar pulgas.

Quando ela se mudou, não ficamos muito felizes. Vimos uma moça de uns 35 anos e começamos a esperar criança, cachorro, papagaio e tudo mais que fosse capaz de arruinar o silêncio tão prezado na minha casa. Mas nada disso veio. Clélia morava sozinha. Só que fazia barulho por uma família inteira, com seus tamancos de madeira e telefonemas em viva-voz tarde da noite.
Por sobre o muro baixo que separava nossos territórios, o sujeito me lançou um último olhar antes de fechar a porta atrás de si. E piscou.

Os dois passaram o resto da tarde lá. E eu não tirei aqueles olhos amarelos da cabeça. Não comentei sobre o episódio da varanda com meus pais. À noite, recusei o convite de umas amigas para pegar a matinê numa danceteria do bairro. Estava enjoada de ouvir som eletrônico e ser abordada por pirralhos de topete oxigenado. Preferi ler um pouco. Estava estudando espanhol e meu pai tinha uma edição argentina de D’Artagnan e os Três Mosqueteiros. Fui para a cama com os três, ou melhor, quatro – afinal, o carinha do título não era mosqueteiro também?

Fiquei na dúvida, pois não conseguia ler. Estava mais concentrada nas conversas que atravessavam minha parede. Meu irmão era moleque e eu, primogênita, ficara com o quarto maior. Grande coisa. Era grudado com o cômodo que Clélia escolhera como dormitório, e vez ou outra eu tinha que socar a parede para ela abaixar o volume da TV. Mas agora eu ouvia Elis Regina cantando baixinho do outro lado – bom gosto para música e para homens, isso ela tinha – e umas risadinhas ocasionais. Será que ele era bom de piada? Logo Clélia ia ver se ele era bom de outra coisa. E eu também.

A música terminou. Ninguém virou o disco. Estavam ocupados. Apurei os ouvidos. O livro eu já tinha esquecido de lado. Então quem começou a rir fui eu, tolamente entretida no meu jogo de invasão de privacidade. Sentia-me esperta. Sentia-me importante como portadora dos segredos de alguém. Naquela semana eu ouvira o quebra-pau verbal entre Clélia e o namorado, o bater de portas, os pneus do carro cantando. Não sabia se eles haviam rompido. Decerto tinham, já que agora ela tinha outro em sua cama, a esperta.

Calei-me quando começaram os gemidos. De discretos, foram se tornando altos, intensos. Senti vergonha de mim mesma quando percebi que molhara a calcinha. Tolice, eu sei. Muitas das minhas amigas já estavam mais rodadas do que a Brasília 77 do meu tio, mas eu era pouco mais do que uma criança. Não ponho a culpa na religiosidade recalcada da minha mãe. Era algo muito meu, minha trava, minha tranca.

Que calor fazia! Toquei a parede que me separava da dupla entusiasmada. Fechei os olhos. Era quase como apagar a parede na minha mente. Enfiei um dedo cuidadoso dentro do short. Muito quente. Muito molhado. Enfiei mais um.

Peguei-me imaginando cenas. Ele, o cara sem nome, por cima, mexendo o quadril em círculos, sem pressa; depois, a garota por cima, pulando sobre ele como uma amazona a galope; então, ela se pôs de quatro e ele agarrou seus quadris e começou a estocar com vigor, trazendo-a para frente e para trás, estocando, estocando. A garota pedia mais. Quando olhei para o rosto dela, era o meu.

Estocar… D’Artagnan tinha uma espada e estocava com ela… os homens adoram armas fálicas e as mulheres adoram ser suas vítimas.

Eles ainda não tinham acabado. Eu já. Esparramei-me na cama banhada de suor, ainda ouvindo os sons do espadachim e sua vítima feliz. Não sei bem dizer o que aconteceu então. Eu me sentia esgotada. Sentia a parede pulsar nos meus dedos. Eles não paravam mais. Caí num sono leve, um sono quase acordado, embalada pela canção de gemidos.

Quem nunca teve a impressão de flutuar por um instante e acordar de repente, chutando ou socando algo num sonho? Aconteceu comigo. Algo vermelho piscou na minha mente, algo brutal. Uns olhos vidrados, sem viço, sem vida. Um corpo abandonado na cama. Dei um tranco com o pé, voltei a mim, vi-me deitada, pernas entreabertas num convite. Fechei-as por instinto. O quarto era quente. Fui ao banheiro lavar o rosto; na volta, veria se meu irmão estava usando o ventilador de chão ou se eu podia furtá-lo enquanto ele dormia.

Não sei o que me levou a olhar pela janela do banheiro. Mas foi o que fiz, e eu o vi. O bonitão. Ele estava apoiado ao muro que separava os quintais. Olhava para a minha janela como se me esperasse. Tão sem sentido quanto essa impressão foi a certeza que tive de que queria descer até ele. Devia.

Lá fora o ar estava fresco demais para o meu pijama indecente. Senti arrepios no corpo todo. Ele notou o efeito. Cruzei os braços, escondendo os seios e fazendo cara de paisagem. O motivo do meu embaraço ia muito além dos meus trajes reduzidos. Estar ali com ele me envergonhava. Ele me envergonhava. Busquei o controle por meio do diálogo mais óbvio.

– Qual é o seu…

– Não. – Ele pôs dois dedos sobre a minha boca. – Você não tem que saber meu nome. Nem eu o seu.

Aproximou-se. Eu? Descruzei os braços, lógico. Ele aproveitou para chegar mais perto. Perto demais. Seu peito tocava o meu. Sua mão ainda estava na minha boca. Às minhas costas eu tinha o muro. Tarde demais para desistir.

O indicador pressionou meus lábios até separá-los. A língua veio depois. Senti o gosto do seu jantar, mas isso não nos deteve. Agarrei-o com força sem saber que o agarrava, sem saber de onde vinha aquela força que seus braços repetiam em mim, colando meu corpo ao seu. Ele afastou minhas pernas com um joelho. Sua coxa pressionou meu sexo. O seu latejou de encontro ao meu quadril. Sua boca me afogou. Sua mão arrebentou a alça da minha blusa e descobriu meus seios. Ele todo era demais para mim. Não pude esperar. Gozei ali, na sua coxa. No seu beijo.

O corpo inteiro tenso e, então, tudo desabou em mim. Minhas pernas amoleceram. Ele notou. Olhou nos meus olhos, que eu desviei, de volta à realidade. É claro que corei. Depois de me entregar à provocação, me recompunha, envergonhada da minha pressa, da minha impaciência. Ele devia pensar que eu era uma caipira. Pensei que ia me pedir algo que eu não sabia se queria dar. Mas ele apenas riu sem voz e me perguntou num sussurro:

– Quantos anos você tem, menina?

– Dezes… Dezoito.

– Mentira.

– E daí? – Sustentei o olhar.

– Ainda é nova demais. Mas não se preocupe. Eu volto pra te buscar.

Saiu andando, passou pelo portão da casa dos fundos, depois pelo portão do terreno, que abriu com a chave de Clélia. Não se saciou. Não olhou para trás. Fiquei sem saber o que ele quisera dizer.

Na cama, segui acordada até a madrugada, pensando sem querer em mil fantasias nas quais nós nos reencontrávamos anos depois e vivíamos um grande amor, uma paixão tórrida ou algo igualmente brega.

Estranhei a ausência do sapateado costumeiro de Clélia logo cedo. Ela não passava muito tempo dentro de casa, mas era domingo e a noite fora boa. Devia ter ficado até mais tarde na cama, sonhando com certos lábios, com certas mãos, como eu.

Na segunda-feira, senti falta dos tamancos pela manhã. E do tilintar desenfreado de chaves depois do desjejum. E dos recados em viva-voz no final do dia. Até do cantarolar no banho de duas horas que enchia meus ouvidos toda noite. Só o que eu ouvia agora era o telefone tocando, irritante, ignorado. Não é que eu gostasse de nada disso. É que…

Os sons desagradáveis do nosso dia-a-dia passam a fazer parte da lista de ingredientes que compõem nossa sanidade. Em São Paulo, as buzinas, os palavrões dos vizinhos, o pagode de sábado à noite na esquina e até os tiros na escadaria do beco marcam hora, estabelecem rotina, atestam que tudo está normal no absurdo diário. E então vem o silêncio. Absolutamente pacífico e bendito. E é aí que você vê que alguma coisa está muito errada.

Lá pelo meio da semana atendi a um telefonema do namorado – ou ex – da vizinha. Até hoje não sei como ele tinha nosso telefone. A folgada devia ter dado o número a ele para recados.

– Desculpa telefonar pra casa de vocês, mas sabe o que é? Estou ligando já faz uns dias e ela não atende. Sei lá se o telefone dela tá com algum problema ou ela que não quer atender. Deve ter colocado a Bina, né? Ela tava louca da vida comigo outro dia…

– É, é assim mesmo… – assenti, sem dizer algo que realmente fizesse sentido.

– Mas então… eu queria te perguntar se você sabe dela. Já deixei uns mil recados na secretária eletrônica. Eu gosto dela, sabe? Briga de casal é foda, mas passa. Quem sabe se você falasse com ela…

– Meu… me deixa fora disso.

– Eu preciso saber se a Clélia tá legal! Por favor!

Não sei se foi por pena ou bisbilhotice que cedi. Mas minutos depois eu estava socando a porta da casa dos fundos e chamando por ela. Também não sei por que me ocorreu simplesmente virar a maçaneta. O fato é que a porta, destrancada, se abriu.

Na cozinha, um resto de espaguete com algo mais fedia. Dois pratos dentro da pia enfeitavam todo o ambiente com moscas. O nojo quase me levou embora, mas a morbidez da minha curiosidade me obrigou a ficar, apoiada pela certeza de que Clélia não usava a casa havia dias.
Mesmo assim, subi as escadas chamando por ela. E se estivesse doente? Fraca demais para erguer uma mão? Hah. Nenhum cara é assim tão bom de cama.

Era o que eu pensava na hora, com deboche, na minha ignorância abençoada. Agora, não consigo pensar em outra coisa que não a imagem que se cravou na minha mente quando entrei no quarto de Clélia. Gritei, gritei até perder o fôlego, como se meu alarme pudesse reverter o quadro, apagar a tinta do tempo, impedir a formação de uma memória. Tarde demais. O corpo, antes roliço e vistoso, jazia cinzento sobre os lençóis, murcho, coberto de moscas que tateavam o que já havia sido um par de seios fartos, uma boca sorridente, uma garota ruidosa e cheia de vida. Um borrão escuro de sangue já velho empapava o lençol junto ao seu pescoço.

É claro que a polícia não nos deu os detalhes apurados na perícia. Mas eu sei o que vi. Vi um corpo esgotado, sugado, espremido como um limão, sem uma gota de sangue dentro de si. Vejo-o agora se me permito fechar os olhos e recordar. Vejo-o às vezes quando não quero. E penso no gosto acre que senti na língua do amante sem nome que a exauriu em mais de um sentido. Que me beijou com uma boca assassina. Que poderia, naquele beijo, ter devorado também a minha vida.

Meus pais não quiseram mais ficar na casa da frente. No final do ano, o contrato terminou e nós evaporamos. Soube mais tarde que o proprietário, sem conseguir arranjar novos inquilinos, mandou demolir todo o imóvel. Não sei o que construíram no lugar. Só espero que não tenha sido uma daquelas igrejas de garagem, para que ninguém mais berre descontroladamente onde Clélia morreu.

Penso às vezes na razão de ter sido poupada. Talvez ele tenha tido pena da minha imaturidade, do nada que eu havia vivido até então. Talvez tenha preferido me deixar com o benefício e a maldição da dúvida. Eu volto pra te buscar. Isso foi há cinco anos. Ele não veio.

Ainda.

Fonte/Autora: Camila Fernandes

Nenhum comentário:

Postar um comentário