quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Caixa Preta


Depois de puxado o gatilho, era sinistra tal lógica e mortal a sua mecânica.

A bala desprendida do pente percorria o cano de alma lisa em busca do crânio para onde foi mirada, e isso era uma viagem sem parada ou retorno. Veio o disparo, veio faísca e enquanto a vítima, de músculos tesos, esperava resignada a certeza de sua chegada, não imaginou também, naquele ínfimo instante, acabar sendo platéia de tão belo e inesperado cinema.


Assistiu em luzes de sonhos e lembranças a criança que era no colo de sua mãe, viu os seios da primeira mulher que teve, aquela medalha ganha na natação dos jogos escolares, o sorriso tímido de sua filha e por última cena se viu menino no quarto onde passou a infância, seu falecido pai lhe desejou boa noite apagando a luz, fechou a porta deixando-o sozinho num escuro denso e de silêncio singular.

Era agora um cadáver ao chão, vizinho de uma arma a certa distância e de uma multidão que assomava ao redor cuidando para não pisar em seu sangue. Alguns cogitaram suicídio, outros assassinato, ninguém parecia ter razão. Questão de tempo para tal resolução, porém nunca compreenderiam os motivos daquele sorriso pálido e bem aventurado, e nunca saberiam em que infinito aqueles olhos aperolados estariam mirados.

Autor: Daniel Mafra

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