quinta-feira, 24 de agosto de 2017

A Armadilha



Os Emory Sinclair deveriam ser felizes. Eram donos da casa em que moravam, na Rua 70-Leste, em Nova York, possuíam uma suntuosa casa de veraneio em Palm Beach e mal podiam contar todo o dinheiro que tinham. Mas Emory Sinclair, depois de ter ganhado uma fortuna antes de completar 35 anos, estava procurando dobrá-la, antes de chegar aos 45 anos. Helen Sinclair, negligenciada e entediada, passava os dias em dispendiosos salões de beleza, sendo massageada, embelezada e posta em forma. Embora ela tivesse 36, parecia ainda não ter chegado à casa dos 30 anos.

Tudo poderia ter corrido bem, se Emory Sinclair não tivesse despedido a sua secretária. Mas ele a despediu, convencido de que todas as mulheres eram idiotas congênitas, contratando Paul Fenton para substituí- la. A Sra. Sinclair não demorou a descobrir que o jovem era solteiro e muito atraente.

De um quarto no terceiro andar da casa da Rua 70-Leste, a que chamava de gabinete, Emory Sinclair negociava com moedas estrangeiras. Movimentando seu imenso capital ao redor do mundo, ele jogava nas notícias de um governo prestes a cair, um ditador assassinado, uma colheita fracassada. E insistia para que seu secretário particular morasse na mesma casa.

Além de seu trabalho normal, Paul Fenton cuidava também das contas particulares da Sra. Sinclair. Como era um jovem bem-apessoado e que sabia vestir-se, era freqüentemente convidado a preencher um lugar vago, nos jantares oferecidos pelos Sinclair. Em outras ocasiões, ele sentia o maior prazer em acompanhar Helen Sinclair a um teatro ou outro espetáculo qualquer, quando Emory Sinclair estava ocupado demais para ir.

Não se passou muito tempo antes que o instinto feminino de Helen Sinclair lhe revelasse o que estava acontececendo. Paul era um companheiro divertido e agradável. Helen sabia o risco que estava correndo ao enganar Emory, mas o perigo tornava a aventura ainda mais saborosa. Mas o que começara como um romance tranqüilo transformou-se numa paixão abrasadora, que pegou a ambos de surpresa, subjugando-os inteiramente. Ficaram convencidos de que não mais poderiam viver um sem o outro. Paul teria ido procurar Emory Sinclair e lhe contado tudo, mesmo que isso significasse a perda do emprego, se Helen não o tivesse contido. Embora ela parecesse apenas uma mulher bonita, havia uma firmeza extraordinária naquele queixo delicado e uma astúcia sempre à espreita por trás dos olhos muito azuis. Helen não tinha a menor ilusão quanto à reação de Emory, caso ela lhe pedisse o divórcio. Ela não tinha dinheiro seu e Paul dispunha apenas do salário, que só teria enquanto conservasse o emprego. E o amor numa água-furtada não era algo que atraísse a Helen. Além do mais, ela não tinha o menor desejo de separar-se de uma fortuna que sabia elevar-se a mais de um milhão de dólares .

Durante as semanas seguintes, Helen pensou bastante no problema. Para dizer a verdade, não lhe saiu da cabeça por um instante sequer. Havia ocasiões em que ela julgava perceber um sorriso zombeteiro no rosto gordo e rosado de Emory Sinclair, perguntando-se então se ele não saberia de tudo e se estava divertindo com a situação. Seria próprio de Emory brincar de gato e rato. Foi isso, somado à sua própria frustração, que a lançou numa fúria silenciosa. Descobriu-se imaginando idéias para livrar-se dele (não gostava da palavra assassinar). Mas não conseguia imaginar um meio que não fosse violento e, ao mesmo tempo, fosse totalmente seguro. Mas Helen Sinclair não era mulher de desistir facilmente e acabou por engendrar um plano realmente engenhoso. Mas a oportunidade só se apresentou no dia em que eles estavam fechando a casa da Rua 70-Leste para irem passar o inverno fora. Helen estava sentada no gabinete de Emory, no terceiro andar, esperando que o marido terminasse de despachar alguns papéis com Paul. Estariam partindo em menos de uma hora. Já estava tudo pronto, os móveis cobertos por capas, a bagagem no vestíbulo, os empregados todos pagos.

Paul aproximou-se dela.

— Aqui estão as suas passagens de avião, Sra. Sinclair. 

Ela percebeu que Emory a estava observando. Como odiava aquele sorriso divertido e zombeteiro dele! Jamais poderia saber o que ele estava pensando. Era um enigma indecifrável.

— Paul tem de ir ao centro da cidade para levar alguns documentos — disse Emory. — Mandei que Johnson o levasse no carro, pois não iremos mais precisar. Tomaremos um táxi até o aeroporto.

Ele se virou para Paul e ordenou:

— Diga a Barton para pedir um táxi para nós, daqui a 15 minutos. Enquanto Paul falava pelo telefone interno com o mordomo, Helen Sinclair pensava rapidamente. Assim que Paul saísse, ela ficaria sozinha
em casa com Emory. Helen levantou-se e caminhou até a porta. 

O coração batia descompassado, mas exteriormente ela parecia muito calma, ao dizer:

— Neste caso, vou dizer a Barton que pode ir embora também. Não precisaremos mais dele, depois que tiver chamado o táxi. Helen foi para o seu quarto, no andar de baixo, onde ficou sentada, escutando. E enquanto esperava, repassou mentalmente mais uma vez o que teria de fazer assim que Paul saísse. Estava acertado para que ela e Emory seguissem juntos para o aeroporto. Ela pegaria um avião para a Flórida, onde passaria um mês com os Henderson, antes de abrirem a casa que possuíam em Palm Beach. Emory ia para Chicago, onde passaria três semanas no Monahan Club, indo depois ao encontro dela, na casa dos Henderson. Paul seguiria para Filadélfia, passando as férias com a família. O plano era perfeito. Ninguém saberia de nada durante três semanas. Quando Emory não aparecesse no Monahan Club, eles pensariam simplesmente que mudara seus planos na última hora. No momento em que verificassem que Emory estava desaparecido, já seria tarde demais. O que ela tinha de fazer agora era bem simples, apenas uma questão de calcular o tempo com toda exatidão. Quando tudo terminasse, bastaria apenas dar um telefonema. O plano era infalível.

A batida da porta da frente fê-la levantar-se. O carro estava começando a arrancar quando ela chegou à janela. Agora Paul já se fora e tudo o que ela precisava fazer era livrar-se de Barton. Apressou-se, pegando o casaco, a bolsa e as luvas. Depois de uma última olhada no espelho, ajeitando o pequeno chapéu de pele para que assentasse melhor, ela pegou o elevador e desceu para o andar térreo.

— O Sr. Sinclair alterou um pouco seus planos, Barton; — disse ela ao mordomo. — Só vai embora mais tarde. Deixe as malas dele aqui no vestíbulo e ponha as minhas no táxi. Diga ao motorista que irei dentro de
poucos minutos. Barton voltou e Helen disse-lhe que não precisaria ficar esperando. Assim que ele saiu, Helen verificou se a porta da frente estava realmente trancada.

Ela olhou para o relógio. Deveriam partir às 10:30 horas. Ainda faltavam seis minutos. No corredor que levava do vestíbulo para a cozinha, nos fundos da casa, Helen acendeu a luz e abriu um armário. Na parede,
estava o quadro de luz. Numa prateleira por baixo havia uma caixa de papelão, cheia de fusíveis. Helen examinou-os rapidamente. Alguns estavam bons, outros queimados. Pegou um que estava queimando e colocou-o em cima da prateleira, voltando em seguida ao vestíbulo, onde ficou esperando pelo barulho do elevador. Ao seu redor, a casa estava fria e silenciosa. Ela teve a impressão de estar ali pela vida inteira. Tentava não pensar, mas sua imaginação voava desenfreada. Quando começou a tremer, perguntou-se se conseguiria chegar ao final. Subitamente empertigou-se, ao ouvir bater a porta do gabinete de Emory e depois os passos dele, a caminho do elevador. Assim que ouviu o zumbido distante do motor do elevador, Helen seguiu rapidamente para o corredor, abriu a caixa de luz e tirou o fusível onde estava escrito “Elevador”, substituindo-o pelo outro que separara, o já queimado. Deixou cair o fusível bom na caixa de papelão. Depois, respirou fundo. Vinha agora a parte que ela mais temia.

Ao atravessar apressadamente o corredor, ela pôde ouvi-lo batendo na porta do elevador, parado lá em cima. Quando saiu para o vestíbulo, o barulho era ainda maior, ecoando pelo poço do elevador, trovejando em seus ouvidos, deixando-a à beira do pânico. No momento em que os saltos de seus sapatos reuniram sobre o chão de mármore, as batidas na porta do elevador cessaram subitamente. Ela já estava quase chegando à porta da frente quando o barulho recomeçou, ecoando com violência pela casa, acompanhado por gritos frenéticos, que lhe provocaram um calafrio. Helen esgueirou-se rapidamente pela porta da rua e bateu-a assim que saiu. Parou no alto da escada, respirando ofegante, para descobrir que o motorista a fitava atentamente. Será que ele ouvira alguma coisa?

Ela ficou ouvindo atentamente, fingindo estar procurando alguma coisa na bolsa. Não era possível ouvir qualquer coisa e a porta ficara aberta apenas por um instante. Helen recuperou rapidamente o controle, desceu a escada e entrou no táxi.

— Por favor, motorista, vamos depressa ou perderei o avião.

No avião, ela tomou uma pílula para dormir e disse à aeromoça que não queria ser incomodada. Quando acordou, o avião já estava sobrevoando a Flórida. Os Henderson receberam-na no aeroporto e levaram-na para a casa deles, à beira-mar. O sol brilhava no céu. Nos dias seguintes, Helen Sinclair procurou não pensar. Nadou, jogou tênis, fez compras. Nunca ficava sozinha. De noite, sempre havia uma festa. Ao ir para a cama, ela tomava pílulas para dormir. Assim, conseguiu manter a consciência a distância. Na sexta noite, sonhou que alguém estava batendo na porta do quarto. Cambaleou até a porta, para abri-la. Mas quando puxou, a maçaneta saiu em sua mão. As batidas continuaram, incessantemente. Aterrorizada, ela chutou e socou a porta. Mas a porta permaneceu imóvel, como um sólido bloco de mármore.

Helen acordou gritando, contorcendo o corpo banhado em suor.

Ficou sentada na cama por algum tempo, escutando. A casa estava em silêncio. Ninguém tinha ouvido. A pergunta que há dias ela se vinha recusando a fazer, subitamente lhe surgiu à mente. Será que ele já estava morto? Por mais que tentasse, Helen não conseguiu evitar os pensamentos. Sua mente parecia dotada de vida própria além do seu controle. Com uma nitidez apavorante, ela viu Emory aprisionado dentro do elevador, gritando por socorro, sentado no chão, chutando a porta... e morrendo, lentamente, inexoravelmente. Helen não conseguia mais agüentar. Se ao menos pudesse falar com alguém... Olhou para o telefone na mesinha de cabeceira, perguntando- se se deveria ou não falar com Paul. Pegou o telefone e discou para o Serviço Interurbano, mas desligou antes que a telefonista atendesse. Era perigoso demais. Helen compreendeu que teria de guardar aquilo para si mesma, pelo resto da vida. À medida que os dias foram passando, a mente de Helen Sinclair se foi acalmando. Três semanas depois, o acontecimento já pertencia ao passado e não mais a perturbava. Os Henderson lhe estavam oferecendo uma festa naquela noite. Era o aniversário dela. Estava a caminho do cabeleireiro, quando Lois Henderson, que ia junto, perguntou:

— A que horas Emory vai chegar?

Helen estremeceu. Havia quase esquecido que era naquele dia que Emory deveria vir encontrar-se com ela.

— Acho que na parte da tarde. Não sei a que horas.

— Se ele for como o meu marido, só vai lembrar-se de que é o seu aniversário no ano que vem.

Helen riu.

— Emory também é assim.

Ela se recordou, estranhamente divertida, como admirara um lindo colar de esmeraldas, exposto numa joalheria em Nova York. Mas Emory achara-o caro demais. Helen prometeu a si mesma que compraria o colar, assim que voltasse a Nova York. De tarde, Helen subiu para o seu quarto, a fim de descansar um pouco, antes da festa. Pensou no que iria fazer quando Emory não aparecesse. Deixaria que os Henderson vissem que estava preocupada, mas não tomaria qualquer providência até o dia seguinte.

Telefonaria então para o Monahan Club, em Chicago, e para Paul, em Filadélfia. Diria a Paul que estava voltando para Nova York. Telefonaria também para Barton e lhe pediria que abrisse a casa da Rua 70-Leste. E pediria a Paul que comunicasse às autoridades o desaparecimento de Emory. Não haveria a menor dificuldade. Quando chegasse a Nova York, toda a parte desagradável já estaria terminada. Helen entregou-se a devaneios pensando na Europa e em Paul, num casamento discreto. Mais tarde, vestiu-se e desceu. Ao entrar no living, deparou, inesperadamente, com Emory Sinclair. Ficou paralisada por um instante, sentindo o sangue desaparecer de seu rosto. Tinha certeza de que ia desmaiar. Tentou falar. Os lábios mexeram-se, mas não saiu qualquer som. Emory estava de pé, com um copo na mão, fitando-a com aquele seu sorriso divertido e zombeteiro.

— Olá, Helen. Você parece que viu um fantasma. Ela se limitou a fitá-lo, incapaz de falar, perguntando-se o que acontecera. Ele não podia ter conseguido sair sozinho. Devia ter sido ajudado pelo motorista do táxi... ou por Barton, que era o único que tinha uma chave da casa. Talvez Barton tivesse esquecido alguma coisa, voltando para buscar. Helen desabou numa cadeira.

— Não me estou sentindo bem — ela tentou dizer, conseguindo apenas emitir um débil sussurro. 

Emory foi até o bar, sem nada dizer, serviu um drinque e levou-o para Helen. Era scotch puro. Ela o tomou.

— Não tente falar — disse ele, sentando-se em frente a Helen e acendendo um charuto.

Helen ficou imóvel, sentindo suas forças retornarem lentamente, observando-o por baixo das pestanas, tentando decifrar-lhe a expressão.

“Ele vai deixar que eu procure adivinhar”, pensou Helen.

— Você já está parecendo melhor, Helen — disse Emory, depois de algum tempo. — Será que pode aguentar uma surpresa?

Ele estava inclinado para a frente, observando-a atentamente. Mas Helen nada disse. Emory pôs o charuto num cinzeiro e meteu a mão no bolso.

— Desta vez eu não esqueci, Helen. — Ele tirou do bolso uma caixa preta, estendendo-a para Helen, ao mesmo tempo em que abria a tampa.

— Para você, Helen.

Ela estendeu a mão, hesitante. Sobre uma base de cetim branco, estava um colar de esmeraldas. Helen olhou para o colar, depois para o rosto do marido, perplexa, sem entender mais nada.

— Quando foi que você...

— Comprei-o quando fui ao centro da cidade, na manhã em que partimos de Nova York. Queria resolver tudo, antes de pegar o avião para Chicago.

— Você foi ao centro?

Helen ouviu suas palavras, como se fossem formuladas por outra pessoa. Emory sorriu.

— Foi por isso que não fui com você para o aeroporto. Pedi a Paul que lhe dissesse que eu tinha ido levar aqueles documentos para o centro, no lugar dele. Eu não queria que você desconfiasse de nada. Queria
que a sua surpresa fosse completa. Helen deixou escapar um grito angustiado.

— Paul ficou lá em cima?

— Ficou. Eu o deixei tomando umas providências finais.

Helen levantou-se, cambaleante, segurando-se numa cadeira, em busca de apoio. Emory sorriu-lhe novamente, divertido, zombeteiro.

— Voltei a casa para pegar minhas malas e Paul ainda estava lá.

Helen fitou-o, de olhos arregalados, incapaz de falar, o rosto extremamente pálido.

— E continuava lá quando eu fui embora — acrescentou Emory, calmamente.

Fonte: Livro "13 Histórias de Arrepiar" - Alfred Hitchcock
Autor: Stanlley Abbott 

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