quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Morte Fora De Época


A Srta. Witherspoon estava agachada, remexendo a terra no canteiro de ervas com uma trolha. Disse a si mesma, mentalmente, que devia tomar cuidado para não remexer muito perto, a fim de não afetar as delicadas raízes das ervas. Era uma jardineira meticulosa e hábil, como os resultados bem atestavam. Suas flores e ervas eram as mais viçosas da cidade. Eram a inveja de todos, se os vizinhos tivessem a virtude de confessá-lo.

Britomar esfregou-se contra o tornozelo da Srta. Witherspoon, ronronando. Ela acariciou distraidamente o gato preto, com a mão esquerda enluvada.

— Olá, Srta. Witherspoon — disse uma mulher da calçada, além da cerca branca de madeira. Era a Sra. Laurel, a divorciada elegante que mudara recentemente para o local. E acrescentou, o tom zombeteiro-amigável não conseguindo ocultar o desdém: — Está preparando aquelas cestinhas de maio de que tanto ouvi falar?

A Srta. Witherspoon empertigou-se e respondeu polidamente, mas com frieza:

— Estou, sim.

A Sra. Laurel sorriu, condescendente, e seguiu adiante. A Srta. Witherspoon continuou a trabalhar, mal se dando conta da interrupção. Tinha coisas mais importantes e prementes em que pensar para se preocupar com a impertinência da Sra. Laurel.

Além do mais, a Srta. Witherspoon já estava acostumada às zombarias. Ao longo dos anos, tornara-se conhecida como a excêntrica da cidade. É verdade que outras pessoas desviavam-se do normal, de diversas maneiras, como os bêbados, os débeis mentais. Houvera até mesmo um assassino, a se contar a surra que Jake Holby dera na esposa esquelética, até matá-la, ao encontrá-la no celeiro com o trabalhador que contratara para a colheita. Mas nenhum desses comportamentos aberrantes era considerado tão esquisito quanto a insistência da velha Srta. Witherspoon em manter um isolamento total. Ninguém jamais entrara em sua casa. E somente os garotos mais ousados, impelidos por uma ânsia de aventura absolutamente irresistível, arriscavam-se além do portão ou sobre a cerca branca de madeira, penetrando no gramado sempre bem-cuidado. Mesmo assim, só o faziam de noite, quando a velha estava dormindo.

Anos atrás, as crianças da cidade haviam inventado um refrão zombeteiro, que ainda era repetido com alegria: “Miss Witherspoon Is a Goon” (A Srta. Witherspoon é uma Assombração). Embora todas achassem que era muito engraçado, nenhuma se atrevia a dizê-lo ao alcance dos ouvidos da Srta. Witherspoon. As crianças detestavam admiti-lo para si mesmas ou, entre si, mas a verdade é que tinham medo da Srta. Witherspoon.

Jamais, ao que qualquer pessoa viva pudesse se recordar, a Srta. Witherspoon falara espontaneamente com quem quer que cruzasse na calçada. Jamais cumprimentara os vizinhos, jamais levara sopa para os doentes ou oferecera um pão aos necessitados. Em suma, ela jamais observara os rituais sociais habituais. Se alguém se tivesse atrevido a perguntar-lhe por que e ela tivesse decidido responder, teria explicado que preferia as plantas às pessoas, basicamente porque as plantas não pecavam e eram incapazes de fazer qualquer mal. Além disso, preservando seu isolamento, ela podia observar melhor, objetivamente, os pecados alheios.

Contudo, a Srta. Witherspoon cumpria um único ritual, mais ou menos social, invariavelmente repetido todos os anos, na Noite das Bruxas. Era a esse evento anual que a Sra. Laurel se referia. Mas a Sra. Laurel e todos os demais habitantes da cidade desconheciam o ritual em sua totalidade. Naquele ano, pela primeira vez, a Srta. Witherspoon estava pensando em alterar ligeiramente o padrão. Afinal de contas, estava ficando velha demais e o artritismo nos dedos era grande desvantagem. Talvez não lhe restassem anos suficientes para cumprir plenamente todo seu programa. 

Assim, naquele ano, era possível que ela cuidasse de duas pessoas, ao invés de apenas uma. Mas acabou decidindo que era melhor não fazê-lo. Depois que se conseguia fixar um padrão com pleno sucesso, era melhor continuar a mantê-lo.

A Noite das Bruxas era a única data que tinha alguma significação para a Srta. Witherspoon, a única que assinalava em seu calendário. Era a véspera de 1º de Maio, a Walpurgis Night na Inglaterra, a Santa Walpurgis que morrera no ano 780, missionária e abadessa, que conquistara renome por sua capacidade em expulsar as bruxas onde quer que fosse. Quem já lera Sir James Frazer sabia que era nesta noite, mais que em qualquer outra, que as bruxas saíam pelo mundo para semear o mal.
Assim, na Noite das Bruxas, todos os anos, a Srta. Witherspoon preparava exatamente dez cestinhas de maio, uma tradição muito antiga, cuja origem ela ignorava. Saía de noite, furtivamente, pendurando-as nas maçanetas de dez casas. E todos os anos havia uma única cestinha especialmente preparada, contendo um brinde dos mais interessantes.

É claro que os habitantes da cidade conheciam a identidade da benfeitora da Noite das Bruxas. Somente o jardim da Srta. Witherspoon possuía tão abundante variedade de flores e ervas.
A cada ano, todos se divertiam tentando adivinhar quem seriam os dez favorecidos pelas cestinhas de flores e ervas, invariavelmente acompanhadas por um verso ou um ditado, escrito com a letra meticulosa da Srta. Witherspoon. Todos achavam graça dessa prova anual da excentricidade da velha Srta. Witherspoon. Mas o que ninguém percebia era o fato de que, todos os anos, um dos contemplados com as cestinhas encontrava-se com um destino estranho e inesperado.

Mas isso não fazia a menor diferença. A Srta. Witherspoon não procurava a fama ou o reconhecimento público por seu trabalho.

O sol estava quente e agradável, enquanto ela selecionava e colhia as flores que seriam colocadas em cada cestinha. Ela ia saboreando mentalmente os maravilhosos nomes latinos — Lathyrus odoratus (ervilha-de-cheiro), Convallaria majalis (lírio-do-vale), e outras. Sem falar no lendário jacinto, que surgira do sangue derramado do amigo agonizante de Apolo, “a flor de sangue marcada pela tragédia”.

Finalmente as cestinhas ficaram prontas e a Srta. Witherspoon colocou-as à sombra do bordo. E, agora, tinha que tomar a decisão final, a decisão importante. Qual a erva que poria na décima cesta, a escolhida? Poderia usar a rizoma da mandrágora, mas talvez não fosse bonita o bastante para atrair algum interesse. A espora podia servir, mas teria que secar as sementes, o que acarretaria mais trabalho do que provavelmente seria necessário.

Por uma questão de simbolismo, ela sentiu-se tentada a usar a beladona. Mas acabou chegando à conclusão de que a melhor escolha era a Digitalis purpurea, a dedaleira. Era verdade que em seu jardim tinha apenas a variedade americana, Phytolacca americana, e detestava-lhe o nome vulgar, pokeweed em inglês, caruru-de-cacho em português. Mas as bagas púrpuras, bem escuras, serviriam perfeitamente. E assim elas foram parar na décima cesta, juntamente com dois versos de Rudyard Kipling, que a Srta. Witherspoon copiou com sua letra impecável:


“Ervas excelentes tinham nossos pais...
Ervas maravilhosas para aliviar suas dores. “

E ela acrescentou: 


“As bagas púrpuras, servidas de qualquer forma, podem transformar um indiferente num amoroso ardente. Um amante ardente ficará ainda mais apaixonado.”

A Srta. Witherspoon lamentava ter que recorrer a uma mentira tão grande. Era uma verdadeira artista e teria preferido que seu ritual anual fosse perfeito sob todos os aspectos. Mas tinha que perdoar-se esse detalhe forjado, no interesse de seus planos.

Naquela noite, ela saiu de casa, acompanhada apenas por Britomar. O luar era maravilhoso e podia-se sentir a primavera no ar quente e úmido. A Srta. Witherspoon, transbordando de felicidade, recitou para si mesma um trecho de O Mercador de Veneza:


“Foi numa noite assim
Que Medéia colheu as ervas encantadas. “

Nove cestinhas foram penduradas e, finalmente, chegou a vez da décima... na porta da Sra. Laurel.
Dois dias depois, Edward Johnston, o alfaiate, teve uma morte dolorosa e inexplicável, vítima de algum emético acidentalmente ingerido, aparentemente em algum prato preparado pela atraente divorciada. O mais estranho é que ele não morreu em sua própria casa, com a esposa e os quatro filhos, mas sim na casa da glamourosa vizinha da Srta. Witherspoon. Em toda a cidade, a única pessoa que não ficou surpresa com o fato de o alfaiate ter morrido lá foi a Srta. Witherspoon. Fora a única que observara as frequentes visitas clandestinas do alfaiate e a única que supusera qual dos dez mandamentos estava sendo infringido entre as paredes da casa da Sra. Laurel.

Na manhã seguinte do dia em que a notícia chocante espalhou-se pela cidade, a Srta. Witherspoon estava trabalhando em seu jardim quando recebeu um visitante inesperado. O xerife aproximou-se dela.

— Bom dia, Srta. Witherspoon:

Ela levantou os olhos do canteiro que estava arrumando e respondeu calmamente:

— Bom dia, Xerife. Deseja falar comigo?

— Quero, sim.

O tom indeciso do xerife traía o constrangimento e as dúvidas que sentia. Agora que estava diante da Srta. Witherspoon, ela parecia-lhe totalmente inocente, acima de qualquer suspeita, incapaz de fazer mal a qualquer pessoa. Apesar disso, a teoria que formulara naquela manhã parecera-lhe mais do que provável.

— Vamos entrar, para podermos conversar mais à vontade — sugeriu a Srta. Witherspoon.
Entraram para a sala de estar, bastante fresca e um tanto escura. Sentaram de frente um para outro, em cadeiras junto a uma mesinha de chá. Britomar pulou para o colo da Srta. Witherspoon, que passou a afagá-lo suavemente, enquanto falava:

— Há anos que estou à sua espera, Xerife.

— Como?

O xerife estava visivelmente aturdido.

— É isso mesmo, Xerife. Sempre soube que não era nenhum estúpido e a qualquer ano poderia descobrir a verdade sobre os meus pequenos rituais.

— Está querendo dizer... que já fez isso antes?

A Srta. Witherspoon assentiu.

— Sabia que acabaria sendo descoberta e mesmo assim continuou?

— Mas claro que continuei. Não podia fazer outra coisa, Xerife. Não se pode renunciar facilmente a um trabalho, à missão que se tem na vida, não é mesmo? — A Srta. Witherspoon fez uma pausa. A pergunta era obviamente retórica e ela própria respondeu: — Seria o primeiro a não renunciar a seu trabalho, Xerife. Eu também não poderia fazê-lo. De certa forma, temos a mesma missão. Não podemos desertá-la, sem perder a honra. O mundo precisa de nossos esforços.

O xerife, começando a compreender, indagou gentilmente:

— E qual é exatamente a nossa missão, em sua opinião?

— Ora, Xerife, livrar a cidade de todos os malfeitores. Há muitos, para que possa cuidar de todos sozinho. E nem todos eles atraem sua atenção. É por isso que, cada ano, escolho um único candidato para extinção.

O xerife não sabia o que responder. A Srta. Witherspoon afugentou o gato do colo e levantou-se.

— Com licença, Xerife. Vou preparar um chá para nós.

Ela voltou da cozinha alguns minutos depois, trazendo uma bandeja com tudo o que era necessário para servir o chá. Durante a ausência dela, o xerife decidira qual a pergunta seguinte que faria:

— Como escolheu seus... seus candidatos à extinção?

— Simplesmente anoto as pessoas que estão infringindo os dez mandamentos e venho extinguindo-as pela ordem. Este ano cheguei ao sétimo mandamento. — A Srta. Witherspoon baixou os olhos para as mãos cruzadas no colo, um tanto embaraçada por enunciar em voz alta o mandamento para um homem. — Não cometerás adultério...

— Está querendo dizer que já... eliminou seis outras pessoas antes?

— Exatamente, Xerife — respondeu a Srta. Witherspoon, com um orgulho visível. — Comecei com a pessoa que mais ostensivamente desdenhava o primeiro mandamento, John Leger, o presidente do banco, que idolatrava o dinheiro. E continuei sem qualquer interrupção até o sétimo mandamento.
Fez uma pausa, como se esperasse um elogio. Como nenhum houvesse, ela continuou:

— A maior dificuldade ocorreu no ano passado: encontrar um candidato que tivesse infringido o sexto mandamento. Tem sido bastante eficiente, Xerife, prendendo os poucos nesta cidade que realmente mataram. — A Srta. Witherspoon sorriu. Seu tom era agora o de um profissional conversando com um igual. — Mas acabei conseguindo. Afinal, não está especificado no sexto mandamento matar o quê. E todos sabiam que Edna Fairbanks preparava carne com veneno para os gatos comerem.

— Então foi isso! — O xerife ficou visivelmente aliviado, por ter finalmente conseguido resolver aquele mistério que já durava há um ano. Um instante depois, perguntou: — Mas não acha que está também infringindo o sexto mandamento, Srta. Witherspoon?

— Não, não realmente. — Os olhos da Srta. Witherspoon estavam faiscando, pela oportunidade que finalmente chegara de revelar a alguém toda a sua esperteza. — Pensei bastante nisso, Xerife. E concluí que, na verdade, não mato ninguém, apenas coloco à disposição das pessoas o instrumento da morte. Não há nenhum mandamento que proíba isso.

A velha está mais doida do que eu imaginava, pensou o xerife. Mas, em voz alta, ele disse outra coisa:

— Mas procurava certificar-se de que a pessoa usaria o seu instrumento da morte, não é mesmo? Foi o bilhete na cestinha da Sra. Laurel que me fez desconfiar.

— É verdade que os bilhetes encorajavam as pessoas a usarem as ervas. Mas tive sucesso tão somente porque as mensagens atraíam o que de pior havia nas pessoas que as recebiam... aos pecados pelas quais estavam sendo punidas.

O xerife não podia deixar de sentir uma certa admiração pela mulherzinha idosa a sua frente.

— Tem feito um trabalho meticuloso, Srta. Witherspoon. Apesar disso, deve compreender que não podemos deixá-la em liberdade.

— Compreendo perfeitamente, Xerife — disse ela, jovialmente. — Sei que tem de cumprir suas obrigações.

O xerife soltou um suspiro de alívio. Ia ser mais fácil do que receara.

— Levarei algum tempo para providenciar tudo. Voltarei mais tarde, com a ordem de prisão.

— Não há problema, Xerife.

A Srta. Witherspoon acompanhou-o até a porta, sem mais demora.

Afinal, a salsa venenosa com que temperara o chá do xerife tinha um efeito rápido. E era tão mortal quanto a cicuta, que Sócrates tomara.

Ela lamentava apenas que aquela morte ocorresse fora de época. Mas tratava-se de uma emergência. Além disso, não contara ao xerife que fora obrigada a pular um mandamento. Pelo que sabia, o xerife jamais roubara coisa alguma. Mas ele estava prestes a infringir o nono mandamento. Não estava planejando levantar um falso testemunho contra ela? A Srta. Witherspoon percebera-o imediatamente.

Mary Barrett

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